O céu não pode esperar

O céu não pode esperar

Publicado em:
19/8/2021
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Minha falecida avó, a Dona Delmina, era uma velhinha analfabeta que só foi aprender a ler e a escrever lá pelos seus 60 e tantos anos. Eu achei um feito incrível, um exemplo de superação e força de vontade. Ela tinha duas motivações fundamentais que a fizeram encarar o desafio:

#01 Ela queria muito ganhar autonomia para assinar os cheques e documentos sem cagar o polegar de tinta e não depender da ajuda de testemunhas. Aqui no Brasil quem não tem a possibilidade de dar um autógrafo, precisa marcar sua digital com se fosse um carimbo, além de contar com a boa vontade de uma outra pessoa para assinar em conjunto, dando assim o efeito legal que a lei determina. O nome desse procedimento é assinatura a rogo.

#02 Só que lá no fundo a sua grande motivação sem sombra de dúvidas era ler a bíblia. Portuguesa e muito católica, vovó fazia parte da Pastoral da Saúde da Paróquia de São Sebastião de Olaria, além disso uma devota fervorosa de Santa Bárbara.

Dona Delmina

Eu me lembro quando era criança, lá pelos meus 8 anos, que toda vez que chegava o verão a gente tinha 2 certezas: que a vizinha venderia sacolé de coco e que cairia um dilúvio bíblico por volta das 17h horas. Antigamente o clima funcionava como um relógio suiço, verão era verão, inverno era inverno. Pois bem, na hora do temporal a Dona Delmina mandava a gente recolher as facas e cobrir os espelhos, acredito que era para não atrair os raios pra dentro de casa, eu cagão de carteirinha obedecia na hora sem discutir. Um verdadeiro ritual nas tempestades, onde o auge da homilia era acender uma vela para a santa protetora contra os relâmpagos e trovoadas.

A cada estrondo era bradado um sofrido: valei-me Santa Bárbara! Eu não via a hora do temporal passar e acabar com todo aquele sofrimento.

Hoje em dia a história é bem diferente. As estações do ano parecem não responder mais ao percurso que nosso planeta faz em torno do sol. O movimento de translação que dura 365 dias e que coloca a Terra ora num ponto mais próximo, ora mais longe do sol, anda meio estranho. Aqui no hemisfério sul, o solstício de verão ocorre no dia 21 de dezembro, marcando a chegada da estação.

Não sei se vocês vem reparando que de uns anos pra cá, não tem chovido no verão com aquela regularidade e precisão de antigamente. Os períodos de estiagem têm sido enormes, e quando chove, acaba sendo uma catástrofe porque parece que vem tudo de uma vez só.

Mas afinal de contas, que raios está acontecendo? Como sou um bicho curioso, fui catar essa resposta e topei com alguns dados.

Em agosto do ano passado, o bolsista e doutorando do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) Gabriel Marques Pontes juntamente com mais duas coautoras, produziram um estudo muito interessante sobre o futuro do clima no hemisfério sul, que acabou sendo publicado na renomada revista científica Nature. E o principal destaque que me chamou mais a atenção foi a realidade que ainda está por vir.

As Mudanças Climáticas nos próximos anos, podem reduzir as chuvas no Brasil em até 30%.

Muita gente já deve ter ouvido falar nas Mudanças Climáticas, um termo cunhado pelos cientistas que refere-se à observação da variação do clima durante uma amostragem de tempo, que pode girar em termos de décadas a milhões de anos. No estudo, Gabriel faz uma análise de modelos climáticos sobre nossa região, comparando a situação atual com a era do Plioceno para tirar suas conclusões. Ele escolheu essa série histórica por se tratar de um período onde o planeta possuía exatamente as mesmas condições climáticas que agora.

E o que temos nesse agora?

Existem vários outros estudos sobre o nosso clima, um farto material que vem sendo produzido pela comunidade científica mundial desde 1880, medindo principalmente a temperatura do planeta. A conclusão de um dos principais centros de análise de dados do planeta, NOAA, instituição científica que faz parte do IPCC — Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima das Nações Unidas, é que a temperatura média do planeta vem subindo em níveis consideráveis, provocando o fenômeno do aquecimento global. Observe a escalada da temperatura dos anos mais quentes desde então:

Gráfico: site ecodebate — Dados do gráfico: NOAA

É esquisito notar que essa variação de 0,4oC a 1,4oC na temperatura média global tenha algum impacto no planeta, mas para minha grande surpresa achei dados sobre o que essas variações podem causar:

Sete consequências do aquecimento global, segundo a ONU:

  1. Com o aquecimento a 2ºC, o mar do Ártico sofrerá degelo durante o verão a cada 10 anos. Essa frequência diminui para 100 anos com o aquecimento de 1,5ºC
  2. Até o final do século, o aumento do nível do mar deve ser 0,1 metro menor no cenário a 1,5ºC do que a 2ºC. O intervalo projetado para 1,5ºC é de 0,26 a 0,77 metro
  3. No melhor cenário, até 10,4 milhões de pessoas a menos serão impactadas pelo aumento do nível do mar até 2100.
  4. Em regiões continentais, ondas de calor podem ser de duas a três vezes maiores no cenário acima de 2ºC do que naquele de 1,5ºC.
  5. O número de espécies de animais e plantas que podem desaparecer é muito maior na projeção para 2ºC do que naquela de 1,5ºC.
  6. Os ciclones tropicais devem ocorrer em menor frequência, mas deve ser maior o número de ciclones com intensidade muito forte, fator acentuado no cenário de 2ºC, em relação a 1,5ºC.
  7. O aquecimento global a 2ºC deve aumentar a probabilidade de ocorrência de secas extremas, assim como falta de chuvas e riscos associados à falta de água
fotógrafa: Kerstin Langenberger

Com a escalada das temperaturas, o risco de variações radicais entre períodos de secas e tempestades furiosas vem sendo mais intenso ultimamente, sem contar com o aumento do nível do mar que em várias regiões já é bem visível. Mas um fato interessante sobre essas análises é que elas tomam como base as medições realizadas de antes do período pré-industrial. As temperaturas nunca foram tão intensas como agora e temos uma pista sobre as causas dessa elevação, e claro, nós seres humanos estamos no centro dessa questão.

Ao que tudo indica, a partir do avanço da industrialização, os níveis de CO2 (Dióxido de Carbono) na atmosfera, um dos principais GEE (Gases de efeito estufa), vem colaborando para o aquecimento global. E para nossa infelicidade, nunca se registraram níveis tão elevados de CO2 como agora. No documentário da NetFlix Nosso Planeta com David Attenborough no alto dos seus 94 anos, apresenta bem o quadro na melhor narrativa de quem tem experiência de sobra pra tocar no assunto. Fica aqui a dica pra quem for assinante.

Voltando ao estudo do nosso amigo Gabriel, o que ele aponta são as consequências da elevação das temperaturas aqui em nossa região. A tese gira em torno de um jogo de sete erros ao se comparar o clima atual com o do Plioceno. Por volta de 3 milhões de anos atrás, as condições das áreas tropicais e subtropicais eram semelhantes, contendo as mesmas quantidades de CO2 estocadas no ar — níveis acima de 400 ppm (partes por milhão de moléculas de ar no planeta) — e temperaturas de 2ºC a 3ºC mais altas do que a era pré-industrial. Mas tem uma enorme diferença nessa comparação: o homo sapiens ainda nem havia pintado no horizonte.

As simulações desses modelos climáticos realizadas no estudo, revelam grandes probabilidades de que as altas temperaturas do verão na linha do equador, acabem por mudar o regime de precipitação, deslocando as chuvas para o hemisfério norte, reduzindo assim boa parte da umidade circulante na região. Ou seja, na estação mais quente do ano, a gente vai ter menos chuva pra refrescar nossas vidas, vai faltar luz, vai impactar na lavoura, na saúde e na economia.

Imagem: divulgação

Existem aqueles que negam todo esse cenário, dizendo que nada pode ser feito para mudar o curso “natural” do clima. Mas acredito que a grande maioria dos líderes governamentais, da sociedade organizada, além é claro, da iniciativa privada estão de olho nessa questão. Esse ano várias nações vão se reunir para discutir o clima na COP26, uma espécie de copa do mundo na discussão sobre as mudanças climáticas. Mas ao invés dos países competirem por um troféu, eles vão cooperar entre si para que possamos reduzir a temperatura média do planeta. Provavelmente será produzido um acordo climático global, contendo várias assinaturas de quem realmente pode fazer o ponteiro mexer.

Agora imagina só o trabalho que seria convencer a vó Delmina, se viva fosse, que os líderes mundiais precisam assinar um documento para que relâmpagos e trovoadas voltem a riscar os céus como antigamente. Não seria uma tarefa nada fácil, mas eu tenho certeza que ela mais uma vez colocaria suas crenças limitantes de lado e entenderia que os “motivos” para esta “ação” são pra lá de razoáveis.

Espero que essas lideranças no dia 01 de novembro acelerem o passo e também superem suas crenças e ideologias, ajudando assim a melhorar o nosso clima, que pelo visto não está nada bom pro nosso lado.

Valei-me Santa Bárbara!

André Dessandes
Por:
fundo
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